Já faz algum tempo que eu me afastei
um pouco dos meus discos do Johnny Cash. O fato de ele ser ouvido até
por gente que não conhece nada (ou não gosta) de country vem me
irritando bastante. Sei que isso é bobo, um certo preciosismo descabido –
mas o que eu posso fazer, se sou tolo desse jeito? Bom, só sei o que eu
não posso fazer. Não posso deixar passar o dia de hoje em branco. Hoje,
12 de setembro de 2013, completam dez anos desde que o homem de preto
disse suas últimas palavras. Dez anos sem Johnny Cahs.
E hoje, também,
eu percebo o quão fútil foi todo esse afastamento artificial. Não há
como não admirar e se apaixonar por Cash, e hoje não tem como, pelo
menos por alguns instantes, ficar com os olhos umedecidos pela ausência
que ele representa na nossa vida.
Escrever aqui sobre o que foi Johnny
Cash é um tanto quanto complicado. A sua história é longa; sua
trajetória foi estelar, marcada por altos e baixos, repleta de
ambiguidades – ambiguidades essas que representam bem o homem que Johnny
Cash foi. Um cara que já afundou no álcool e nas drogas, que depois se
salvou – mas que mesmo durante toda a perdição, permaneceu cantando
belíssimos hinos gospel.
Explodiu como um míssil dirigido ao infinito,
junto com seus amigos na Sun Records; teve uma bonita vida ao lado de
June Carter, tanto na música quanto fora dela; foi figura chave do
princípio do rock ‘n’ roll e também no chamado outlaw country. Como
pensar sobre a música ocidental do século XX e não pensar em Johnny
Cash?
Seja cantando sobre a prisão de
Folsom ou sobre os nativos americanos, ou mesmo falando de Deus, o que
fica é aquela voz profunda e grave, ecoando por todos os cantos da vida
dos amantes de country – e também da do público ‘não especializado’. Por
isso, vale a pena relembrar de algumas obras e canções marcantes do
cantor e compositor. Mas já fica o aviso: vamos trilhar esse caminho de
recordações a partir das minhas próprias experiências com a obra do
Homem de Preto, então pode ser que algumas coisas fiquem de fora e
outras ‘estranhamente’ sejam incluídas. Esse, afinal, é um relato
pessoal em busca da minha própria redenção frente a esse santo da música
country.
Na verdade, vou reduzir bastante a
minha seleção. Falarei apenas das últimas obras gravadas pelo nosso
herói: os seis volumes conhecidos como The American Recordings. Essas
gravações são, obviamente, extremamente populares – em especial por
causa canções como “Hurt”. A sacada do Rick Rubin foi, por certo, genial
e apresentou Cash para uma nova geração de ouvintes, até este tolo que
voz escreve. Além dos covers muito bem arranjados de canções populares
dos anos 80 e 90, há músicas menos famosas que me cativam por demais. E,
também, ao darmos uma olhada nesses seis álbuns, poderemos fazer uma
reconstrução da carreira completa de Johnny.
No primeiro volume, reina um clima
intimista, só com Johnny e seu violão. E já abrimos os trabalhos com uma
retomada do início carreira de Johnny, já que ‘Delia’s Gone’ figurava
no repertório do cara desde 1962 – retomada que se estende para ‘Oh Bury
Me Not’, gravada pela primeira vez por Cash em 65. Também temos duas
canções sobre trens – tema bastante recorrente na obra de Cash: ‘Let The
Train Blow The Whistle’, composição própria, e o cover de ‘Down There
By The Train’, música escrita por Tom Waits para Johnny. Podemos ainda
nos deleitar com ‘Tennessee Stud’, uma interpretação ao vivo de uma
canção que foi hit na voz de Eddy Arnold, em 1959.
Os outros dois
grandes destaques desse álbum, pra mim, ficam por conta de duas músicas
religiosas: ‘Why Me Lord’, faixa composta por Kris Kristofferson em
1972, numa época em que ele estava a procurava de salvação; e
‘Redemption’, como o título já anuncia, coloca Cash num papel similar ao
de Adão no Éden, expondo que a redenção está aberta para todos que
quiserem, afinal, “you do have a choice.”
No segundo volume, Unchained, lançado em
1996, as coisas mudam um pouco: Tom Petty e seus Heartbreakers entram
como banda de apoio, e além deles há mais alguns músicos que fazem
participações especiais. ‘Rusty Cage’, original do Soundgarden, talvez
tenha sido o maior sucesso do disco com o novo público que o primeiro
disco criou. Mas certamente é quando Cash escolhe fazer versões de
canções de Don Gibson (‘Sea of Heartbreak’), Jimmie Rogers (‘The One
Rose’), Dean Martin (‘Memories Are Made Of This’), The Louvin Brothers
(‘Kneeling Drunkard’s Plea), Roy Clark (‘I Never Picked Cotton’) e Lucky
Starr (‘I’ve Been Everywhere’) que seu brilhantismo vem à tona.
É
impossível não amar Johnny por essas coisas: conferir a obra dele é como
dar uma lida numa enciclopédia de referências da música country. Além
dessas belas versões, há também um cover de ‘Southern Accents’, do Tom
Petty, que mata a pau.
Com ‘Solitary Man’, que saiu em 2000, as
coisas mudaram novamente: voltamos a um clima mais pessoal e, como o
título indica, solitário. A faixa de abertura, ‘I Won’t Back Down’, mais
um cover de Tom Petty (e que também conta com a participação do mesmo),
é encarada como uma resposta de Johnny à sua própria condição de saúde,
já bastante debilitada – e a interpretação é linda de morrer.
Outro
ponto forte é a faixa que dá título ao disco, uma composição de Neil
Diamond lançada em 1966 e que, talvez, represente um pouco a maneira
como Cash pode ter se visto durante vários momentos de sua vida. Temos,
de novo, várias belas referências a clássicos.
Aparecem representados:
Frankie Laine (‘That Lucky Old Son [Just Rolls Around Heaven All Day]’),
Egbert Williams (‘Nobody’, gravada originalmente – pasmem! – em 1906),
David Alan Coe e Tanya Tucker (‘Would You Lay With Me [In A Field Of
Stone]’), novamente os Louvin Brothers (‘Mary Of The Wild Moor’) e, por
fim, ‘Wayfaring Stranger’, uma canção tradicional que já foi gravada por
deus e o mundo. É importante, também, prestar atenção em outra retomada
de um hábito da carreira de Cash: suas músicas também são críticas, e
isso vem à tona com ‘Country Trash’, música que Johnny compôs em 1973.
O
quarto volume das American Recordings, lançado em 2002, também é, de
longe, o mais bem sucedido comercialmente. The Man Comes Around é o
primeiro disco de platina recebido pelo Homem de Preto e, também, o
primeiro álbum dele a chegar em segundo lugar na lista de discos country
da Billboard USA desde 1976. Na minha opinião, o sucesso do álbum é
bastante justificado pela sua qualidade: esse é o melhor dos seis
American.
A faixa-título, que abre os trabalhos, é certamente muito boa,
mas é difícil falar desse quarto volume sem começar por ‘Hurt’. Apesar
de ter acabado me cansando da música – que é, normalmente, a canção que
vão tocar quando alguém pedir Johnny Cash -, é impossível deixar de
reconhecer que ela acabou sendo o epitáfio perfeito para uma vida como a
de Johnny. Outro ponto alto certamente é a versão de ‘In My Life’, dos
Beatles – um dos melhores covers já feitos de uma música do quarteto de
Liverpool; além de ‘Desperado’, dos Eagles, que traz Don Henley
acompanhando Cash nos vocais.
E é claro que não podia faltar aquela
parte recheada de referências às preferências musicais do nosso bom
Johnny: Frederick Weatherly (com a balada irlandesa ‘Danny Boy’, que
data de 1910), o lendário Hank Williams (‘I’m So Lonesome I Could Cry’),
outro tema tradicional (‘Streets of Laredo’) e Vera Lynn (‘We’ll Meet
Again’). E no papo de retomada da carreira de Johnny, podemos destacar
‘Tear Stained Letters’, que, pra mim, é uma das mais belas de suas
músicas.
Em 2006 saiu o primeiro dos volumes
póstumos da série American… O setlist de A Hundred Highways foi
escolhido entre as sobras do material gravado em 2003 – e nessas horas a
gente pode notar o quanto o bom velhinho estava afim de trabalhar,
porque é muito material e de muita qualidade. A Hundred… bateu seu
predecessor nas tabelas da Billboard USA, chegando a primeiro tanto no
country quanto na Hot 100; por enquanto ele permanece ‘só’ com disco de
ouro, mas imagino que seja questão de tempo até ser agraciado com a
platina.
O disco já abre com um petardo: o anseio pela ajuda Dele
permanece constante na vida de Cash, e ‘Help Me’, canção composta por
Larry Gatlin e gravada por Kris Kristofferson em 72, deixa isso bastante
claro.
A sequência do álbum permanece religiosa e Johnny vem nos dizer
que Deus pode nos abater, quando ele canta a tradicional ‘God’s Gonna
Cut You Down’; e mais pra frente ele conta sobre como começar a
acreditar em poderes maiores, ao cantar a sua ‘I Came To Believe’. Mas
nem só de gospel vive esse disco, ainda há versões bacanas como:
‘Further Up (On The Road)’ (Bruce Springsteen), ‘Love’s Been Good To Me’
(escrita por Rod McKuen e gravada por Sinatra, em 69) e ‘Rose Of My
Heart’ (Hugh Moffatt).
Pra encerrar essa nossa jornada pelo
final da carreira de Johnny Cash, resta apenas falar sobre American VI:
Ain’t No Grave (2010). O título já explica muita coisa: nenhuma cova vai
segurar o corpo de Cash – bom, talvez segure o corpo, mas não a sua
alma… essa está bem viva e presente em cada canção que ele já cantou.
Essa afirmação já vem com a faixa título que, como no ‘The Man Comes
Around’, abre o álbum.
A voz cavernosa e enrouquecida pela idade de
Johnny soa profética quando ele canta aquelas palavras mágicas: “nenhuma
cova vai segurar o meu corpo.” O outro grande gospel dessa lista é a
interpretação de uma passagem da bíblia, ‘I Corinthians 15:5’. A seleção
feita por Rick Rubin também mostra algumas recuperações de velhos
artistas que Johnny fez em seu final: Tom Paxton (‘Can’t Help But Wonder
Where I’m Bound’), Porter Wagoner (‘A Satisfied Mind’), Hank Snow (‘I
Don’t Hurt Anymore’), Bob Nolan (‘Cool Water’), Ed McCurdy (‘Last Night I
Had The Strangest Dream’) e Queen Lili’uokalani (‘Aloha Oe’, escrita
pela havaiana em 1877 e tornada particularmente famosa por Elvis
Presley, em 1961).
Bom, feita essa volta toda por esses
seis discos, o que podemos dizer sobre uma carreira de mais de cinco
décadas? O meu ponto é que os seis álbuns dizem muito sobre o que foi
essa carreira toda. Johnny foi um músico muito inteligente, um homem
controverso, muitas vezes perturbado, mas sensível como poucos e dono de
uma forte religiosidade.
Assim como nos American, sua trajetória
musical inteira foi marcada pela versatilidade: flertes com o rock, com o
folk e com o gospel foram constantes e definem o que é o country de
Johnny Cash. E também é muito importante notar através desses flertes
quem influenciou esse grande homem: prestar atenção no conjunto da obra
de Cash é, também, descobrir um mundo de referências e influências muito
bacanas. Basta estar aberto pra reparar nisso. Johnny com certeza é uma
lenda do country e vejo que o fato de ele ser tão popular o torna a
melhor porta de entrada para o estilo.
Mas, de qualquer forma, o que
realmente importa dizer é o seguinte: já se passaram 10 anos e todos os
seus fãs, senhor Cash, sentem a sua falta. Nós esperamos que o senhor
esteja caminhando na linha junto com June, e que vocês sejam como aquele
velho rapaz sortudo que só ficava passeando pelo paraíso.